Vivência subjetiva decorrente da perda
do trabalho:
o luto pelo não-trabalhar
o luto pelo não-trabalhar
Ana
Paula Morais
Psicóloga
Clínica
Resumo
Nossa
experiência com o trabalho vai muito além do status social, do salário e das
tarefas que precisam ser cumpridas. Há um envolvimento cognitivo e, sem
dúvidas, afetivo, que está intimamente conectado com os significados do
trabalho e o sentido que damos a ele. Este artigo se propõe a esclarecer que o
trabalho tem uma função fundamental na vida dos sujeitos e a compreender o sofrimento
decorrente da perda do trabalho. O luto por não trabalhar é um processo
subjetivo legítimo e particular para cada sujeito, entretanto o sofrimento
decorrente dessa vivência não necessita ser eterno e insuportável. A psicologia
clínica pode, e deve, se aproximar do mundo do trabalho a fim de auxiliar nas
dificuldades referentes a essa dimensão da vida.
Palavras-chave:
trabalho, perda, luto.
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Desde a Revolução
Industrial no século XVIII, a concepção de homem e sua relação com o trabalho
modificaram-se de maneira importante. Com a Revolução, os países tiveram um
propulsor sem precedentes para o seu processo de industrialização, e a
organização política foi fortemente afetada pelo poder de comércio e pelas
novas transações econômicas. As formas de produção, a urgência por mão de obra,
as mudanças familiares e sociais que a nova economia trouxe tomaram proporções
globais, onde o modo de perceber o mundo foi irreversivelmente transformado, em
maior ou menor grau, ao redor do mundo.
A importância econômica
do trabalho. A partir deste momento, o capital tornou-se um símbolo da
capacidade de se comunicar nesse novo contexto em que a língua falada é a
economia em expansão. Filho da Revolução Industrial, o capitalismo passou a ser
o mediador entre os indivíduos e o consumo, fazendo do trabalho assalariado
fonte de subsistência. O dono dos meios de produção empenhava-se em transformar
o trabalho em lucro por meio da mão de obra, impulsionando a produtividade e o
crescimento econômico. Já para o trabalhador, o trabalho representava um modo
de continuar sobrevivendo e um posicionamento frente a nova estrutura social
que se delineava. O trabalho, enquanto ação, informa o que somos e de que
maneira nos posicionamos no meio social. As sociedades modernas, então, passaram
a ver no trabalho mais do que sua inicial característica econômica. (Antunes,
2002 – Socialização, trabalho e cidadania) Sua relação com o trabalho mudou
quando este passou a ser encarado também como essencial para o exercício da
cidadania, uma afirmação da dignidade humana e uma prática importante para a
socialização dos indivíduos em uma sociedade capitalista. Sendo assim, o
trabalho, que antes vinha se configurando como o eixo em torno do qual se construíram
as sociedades modernas e indispensável para o seu desenvolvimento, agora afirma
definitivamente sua centralidade.
Pode-se questionar a
real centralidade do trabalho em nossas vidas, e criticar o quanto a simples
reprodução dos contextos sociais no cotidiano acaba por naturalizar o papel do
trabalho nesta sociedade. São questionamentos válidos e importantes de serem
feitos, afinal a falta de reflexão sobre o papel do trabalho pode levar a uma
preocupação com as técnicas e a eficácia dos métodos que se encerram em si
mesmas, perdendo de vista o significado laboral das atividades que realizamos.
A proposta deste artigo não é a naturalização de realidades, mas sim o
esclarecimento de que o trabalho de fato exerce uma função fundamental na vida
dos sujeitos e a compreensão do sofrimento decorrente da perda do trabalho.
Significados do
trabalho. Diante da proposta deste artigo, e considerando que o processo de
luto se dá diante da perda de um objeto de estima, é indispensável compreender
como o trabalho adquire essa característica particular na vida dos indivíduos. O
pressuposto do trabalho é uma relação de transformação mútua entre o homem e a
natureza, que gera significado. É através do trabalho que a ação de dar
significado à natureza se concretiza, da mesma forma que a relação entre
sujeito e objeto é mediada pelo significado (Codo, 1997). O significado que
surge e que medeia é peça chave na dimensão laboral da vida humana.
O trabalho e suas implicações subjetivas
Os significados e sentidos do trabalho são
pesquisados há anos pelas mais diversas áreas do conhecimento. Alguns
estudiosos defendem a distinção entre os termos, enquanto outros os utilizam
como sinônimos. A despeito da problemática dos conceitos, a etimologia da
palavra sentido, originária do latim sensus,
remete à percepção, significado, sentimento. Pode-se considerar que os
significados são construídos coletivamente em um determinado contexto
histórico, econômico e social concreto, enquanto os sentidos são uma produção
pessoal em função da apreensão individual dos significados coletivos nas
experiências do cotidiano. Uma revisão da literatura mostra que mesmo havendo
diferentes estudos sobre significado e sentido, o que há em comum entre eles –
e provavelmente a questão mais importante – é que ambos são produzidos pelo
sujeito a partir de sua experiência concreta na realidade (Tolfo, Coutinho,
Almeida, Baasch & Cugnier, 2005).
Útil para discussão deste artigo é a definição que
Morin (2001) apresenta de sentido do trabalho como uma estrutura afetiva
formada por três componentes: significado, orientação e coerência. O
significado refere-se às representações que o indivíduo tem de suas atividades
e o valor que lhe atribui; a orientação é a inclinação para o trabalho, o que
ele busca e o que guia suas ações; e a coerência é o equilíbrio que o indivíduo
espera de sua relação com o trabalho. Sendo a relação do sujeito com o trabalho
uma dimensão afetiva, é compreensível que a falta de trabalho gere um sentimento
de perda semelhante ao que se desenvolve no processo de luto.
Pesquisas realizadas pelo grupo MOW (1987) e por
Morin (2001) apontam que mesmo que tivessem condições de viver confortavelmente
para o resto da vida, as pessoas continuariam trabalhando, pois o trabalho,
além de ser uma fonte de recursos financeiros, é um meio de se relacionar com
os outros, de se sentir parte integrante de um grupo, de ter uma ocupação e de
ter uma meta a ser atingida na vida. É indiscutível que o trabalho transborda
sentido individual e social, é um meio de produção da vida de cada um ao
permitir subsistência, criar sentidos existenciais ou contribuir na
estruturação da identidade e subjetividade.
O trabalho como uma
atividade genérica torna-se uma forma de relacionar-se com coisas e pessoas, e
em consequência disso leva à configuração de identidades, jeitos de ser e
existir no mundo compartilhado. Sendo assim, o desemprego é, frequentemente, a
origem de experiências de solidão, desamparo e desespero (Sato e Schdmit, 2004).
Essa vivência subjetiva decorrente da perda do trabalho não pode ser
compreendida dissociada do contexto de vida do sujeito, do contrário seria
incorrer em uma abstração. Trabalhar é condição fundamental para viver, não
apenas viver materialmente ou socialmente, mas além de tudo subjetivamente. O
trabalho é fonte não só de sofrimento, mas também de estruturação pessoal.
Entre a subjetividade e o sujeito está a singularidade, a insistência de uma
singularidade que, entre outros aspectos, está no plano da afetividade. A forma
como cada um se relaciona com o trabalho e como este estrutura e se estrutura
em sua personalidade é muito particular, porém não há dúvidas sobre o investimento
afetivo implicado nesse processo. A
perda do trabalho poderia ser vivenciada, então, como a perda de um objeto –
pessoa, coisa ou situação - onde se
investiu afeto. (referência?) Por perda do trabalho, no presente artigo,
entende-se a impossibilidade de trabalhar decorrente de qualquer situação
(aposentadoria, incapacidade por motivo de saúde, entre outros). A retirada do
afeto investida a um objeto pode levar a um processo que ocorre em vários
momentos da vida e por diversos motivos: o luto.
O processo de luto
O luto é uma reação
natural, comum e esperada após o rompimento de um vínculo. Um processo de
elaboração de uma perda significativa, que não se limita a casos de morte mas
também a situações irreversíveis como separação e aposentadoria. A perda
implica necessariamente um interesse pelo que foi perdido e pode vir
acompanhada de sofrimento intenso pelo objeto significativo perdido, resultando
em um processo dinâmico, idiossincrático e multidimensional. Cada um
experimenta o processo de luto à sua maneira, porém espera-se que este não se
estenda demasiadamente e que tenha uma resolução saudável e estruturante para o
sujeito. Enlutar-se é estar envolvido em uma transformação de esquemas internos
com repercussões externas, e essa experiência pode se tornar estressante em
algum momento e fazer com que o enlutado se sinta desamparado.
Há
uma importante contribuição de Freud (1917) para a compreensão do luto, que foi
o início das investigações e teorizações sobre pessoas que perdem algo de forma
irreversível. Segundo esse autor, o luto tem dois destinos possíveis: a
elaboração do luto ou o fracasso na elaboração, que levaria à melancolia. A
diferenciação entre os dois processos é que no primeiro, a perda do objeto é
consciente e o teste de realidade é eficaz na percepção de que o objeto não
está mais ali, permitindo que o enlutado volte sua libido para um novo objeto
de afeto, o que nem sempre é uma exigência fácil de ser realizada. Já no
segundo processo, o que se perde é um objeto idealizado, um fracasso no teste
de realidade e a perda está no campo do inconsciente, frequentemente resultando
em uma investida libidinal voltada para o próprio ego do sujeito. Ocorre uma
identificação da pessoa com o objeto, sua internalização no ego e atitudes
hostis que seriam dirigidas inicialmente ao objeto perdido. As características
do luto e da melancolia são semelhantes: desânimo profundo, perda de interesse
pelo mundo externo, inibição generalizadas das atividades e incapacidade de
investir afetivamente (amar). A diferença está na diminuição da auto-estima
acompanhada de auto-acusações severas e a ambivalência de sentimentos em
relação ao objeto que acontecem na melancolia. Isso impede a aceitação da perda
e torna o processo de luto longo e doloroso. As duas propostas freudianas para lidar
com a perda do objeto estimado não encerram as possibilidades de vivência do
luto, que pode não ser bem elaborado sem necessariamente resultar em
melancolia.
A
discussão sobre o tema é ampliada pelos estudos de Parkes (1998), que entende o
luto como uma importante transição psicossocial na experiência humana. Um
vínculo rompido vivenciado na idade adulta pode ter consequências nos âmbitos
somático, social, emocional e cultural, e estudar o luto requer a ampliação da
experiência humana a uma variedade de conhecimentos para além do psiquismo. É
incontestável o impacto da cultura no processo de elaboração do luto; as
relações entre desenvolvimento psíquico, traumas, doenças mentais e luto
perpassa crenças, valores coletivos e o que culturamente entende-se sobre
perdas (separação, aposentadoria, doença, morte, entre outros). O luto pode ser
uma reação comum e esperada diante do rompimento de uma relação significativa –
incluindo a relação entre o indivíduo e seu trabalho – impactando o indivíduo
de maneira a priori imensurável.
Portanto, é fundamental acrescentar aos estudos e à discussão deste assunto
como a cultura influencia o processo de elaboração do luto e como ela pode
auxiliar o sujeito a viver esse processo.
As
teorizações dos autores aqui apresentados não restringem as formas de vivenciar
o luto, apenas contribuem para elucidar os processos psíquicos que podem
acontecem com aqueles que passaram por uma perda irrecuperável. Cada pessoa
possui sua história pessoal, social e cultural que a leva a responder de
determinada maneira a uma situação dolorosa como a perda do trabalho, cabendo
ao profissional de psicologia auxiliá-lo, caso necessário, para que essa
experiência possa ser vivida de forma menos traumática e que represente uma
oportunidade de crescimento pessoal e aprendizado diante de futuras perdas.
Teoria do Vínculo
Falar
em perda, seja ela simbólica ou concreta, é se referir a rompimento de vínculo.
Bowlby (1993) é um estudioso que pesquisa os aspectos psicológico e biológico
do luto, integrando psicanálise e etologia - estudo dos comportamentos
específicos das espécies – em sua teoria do vínculo. Nesta teoria, o luto é
estudado através dos comportamentos de vínculo afetivo. Essa perspectiva
teórica é útil na proposta do presente artigo, visto que a relação do homem com
o trabalho se dá também em uma dimensão afetiva.
O autor supracitado desenvolveu uma teoria de vinculação,
que diz respeito aos vínculos afetivos que são criados pela familiaridade e
proximidade com figuras parentais no início da vida e que se mantém ao longo da
vida e se estendem para outras relações. A teoria da vinculação afirma a
necessidade universal que as pessoas têm de desenvolverem ligações afetivas de
proximidade ao longo da vida com o objetivo de se sentirem seguras e poderem
explorar o mundo, conhecendo assim os outros e a si mesmo. Essas ligações
afetivas de proximidade, ou relações de vinculação, são aquelas únicas e
exclusivas, que se tornam recursos importantes na procura de conforto e apoio e
que consequentemente implicam em afetos intensos quando há uma separação. Essas
relações contribuem de forma imensurável para o sentido de segurança interna
que desenvolve-se ao longo da vida, são relações insubstituíveis e sua perda
pode ser muitas vezes irreparável. A vinculação é uma interação dinâmica e não
um laço estático, portanto o vínculo e o significado desse vínculo podem ser
construídos e desconstruídos diversas vezes durante a relação. Isso também pode
ajudar a esclarecer alguns sentimentos ambivalentes que podem surgir durante o
processo de luto. Sendo assim, pode-se inferir que quanto mais forte e intenso for
o vínculo ente uma pessoa e seu objeto de estima, maior serão o impacto e o
sofrimento sentidos por uma ruptura real e irreversível desse vínculo, como por
exemplo a perda do trabalho.
Segundo
Bowlby (1993) o processo de luto pode ser compreendido em quatro fases: (1) o
choque, (2) o desejo de busca pela figura perdida acompanhada de uma intensa
saudade, (3) a desorganização e o desespero com tendências a culpar as pessoas
próximas e, (4) a reorganização em que existe uma aceitação da perda.
Entretanto, nem todas as pessoas experimentam essas fases, afinal o luto não é
um processo linear. É por esse motivo que ele, também, não tem data para
terminar e sua duração depende das características de personalidade do enlutado
e do nível e intensidade da relação com o objeto. A adaptação à perda de um
objeto de afeto envolve o esforço e o empenho por um certo tempo em tarefas
básicas, que são: aceitar a realidade da perda, trabalhar a dor advinda da
perda, ajustar-se a um ambiente onde o objeto está ausente e transferir
emocionalmente o objeto e prosseguir com a vida.
A primeira
tarefa é justamente aceitar a perda real e definitiva do objeto. A demora em
completar essa tarefa pode acontecer pelo não acreditar na perda e implicar em
diversos tipos de negação por parte do indivíduo, como negação de fatos da
perda, do significado da perda ou da irreversibilidade da perda. A segunda
tarefa diz respeito a trabalhar a dor da perda, entendendo como ela é
vivenciada por cada um em particular. Sentir a dor, inclusive física, e passar
por ela é fundamental no processo, que pode ser prolongado em algumas situações
porque o enlutado evita ou suprime essa dor. Uma forma bastante comum de
boicotar essa tarefa é “cortando” os sentimentos e negando que a dor existe.
Esse embotamento afetivo é muito sério, e pessoas que na sua história de vida
não se permitiam sentir e experimentar os mais diversos sentimentos podem ter
maior dificuldade nessa tarefa. A terceira etapa do processo de resolução do
luto trata da necessidade o sujeito de se adaptar ao ambiente onde o objeto
está ausente. Existem três áreas da vida que requerem ajustamento depois de uma
perda significativa: ajustamentos externos, que são sobre o funcionamento
diário no mundo; ajustamentos internos, relacionados ao sentido do self (o eu
subjetivo); e ajustamentos de crenças, onde considerações sobre o mundo são
refeitas. Ficar preso nesta tarefa mostra uma significativa falta de adaptação
à perda. A quarta e última tarefa pode ser a mais difícil, por mexer com
sentimentos intensos e importantes e por exigir grande esforço por parte do
enlutado. Para finalizar e encerrar da melhor forma possível o processo de luto,o
sujeito precisa acabar com a necessidade de reativar a representação do objeto de
uma maneira exagerada no cotidiano. Uma pessoa nunca perde as memórias de uma
relação significativa, e isso realmente não precisa ser feito. Porém é preciso
guardar as lembranças da relação significativa de modo que ela, ou a falta
dela, não interfira na vida futura do enlutado.
É possível traçar o paralelo, a partir da teoria do
vínculo, entre a perda de uma pessoa querida e a perda do trabalho. Em ambas as
situações uma significativa relação foi rompida, e o sujeito se vê em uma nova
situação de vida. Em ambos os casos reações emocionais, comportamentais e até
mesmo físicas emergem na tentativa de uma reorganização pessoal diante das
novas demandas internas e externas.
O luto entendido como uma crise
Viver é
sempre uma surpresa, a rotina é ilusória: todas as pessoas passam por crises em
suas vidas, sem exceção. As mudanças virão, e consequentemente, a crise.
Pode-se entender a crise como a vivência de determinada situação que demanda
novas respostas que o sujeito não possui, não desenvolveu, não domina ou perdeu
(Tavares, n.d.). Essa definição dá ênfase ao entendimento da crise como algo
processual, sendo diferente da ideia mais difundida de que a crise se restringe
apenas à manifestação sintomática. Para tanto, é possível identificar oito
aspectos que compõem a crise. São eles a “demanda, condições internas ou
externas, resposta, domínio ou capacidade, complexidade, processo,
subjetividade e solução” (Tavares, n.d.).
Um ponto
que chama atenção para a crise é a forma como ela se resolve, levando em
consideração que ela acaba quando se alcança novo equilíbrio dinâmico. Quando
resolvida positivamente, o indivíduo sai fortificado da experiência, pois
adquiriu novas respostas frente a determinadas situações da vida, ou seja,
tem-se o aumento progressivo do repertório de respostas e competências,
promovendo um novo estado de equilíbrio dinâmico. Outros dois desfechos para a
crise seriam a estagnação, em que o sujeito busca ajustar-se à situação
procurando evitá-la e por isso se acomoda em nível inferior do que se imagina
alcançar; e a outra maneira seria a cristalização de sintomas significativos e
requer, portanto, a vivência da fase crítica da crise (Tavares, n.d.).
O luto pode
ser entendido como uma situação de vida que, em
alguns casos, desponta uma crise. Ele é caracterizado como um processo
de assimilação da perda e por um esforço para se aceitar o que não se pode
mudar. Ter o vínculo com um objeto de investimento afetivo e emocional rompido
é uma experiência única, que é entendida nos âmbitos sociais, emocionais,
culturais e somáticos. Mesmo sendo um processo penoso, essa crise quando
resolvida positivamente pode ser entendida como normal e necessária para a
superação da perda (Silva, Carvalho, Santos & Menezes, 2007). Além disso,
pode ser compreendido como a fase de expressão dos sentimentos da perda e de
aprender que a morte se torna real, impelindo o indivíduo a estabelecer novas
concepções de mundo.
Sob a perspectiva
de Freud citado por Medina, Jiménez, Criado e Laborda (2000), o luto consiste
em aceitar a realidade da perda e ir desligando a libido do objeto perdido. Já
Sanders (1999), considera o luto como a representação de um estado experiencial
que a pessoa sofre após tomar consciência da perda. Então, segundo essa teoria,
o luto seria doloroso por ter que desligar-se do objeto perdido e manter
internalizados seus traços (Bromberg, 1994).
Diante do
exposto, o luto se encaixa na definição de crise, em que uma nova situação – no
caso a perda do trabalho – demanda uma nova resposta, que nesse caso, consiste
em uma espécie de superação, de adequação a ausência dessa condição. O luto,
assim como outras crises, terá um desfecho satisfatório se houver crescimento e
amadurecimento após o enfrentamento dessa experiência de perda, se o resultado
dessa vivência possibilitar a criação ou o desenvolvimento de um coping mais sofisticado e adaptativo que
permita lidar com situações futuras mais facilmente. Essas tarefas parecem ser
essenciais para que a crise vivida diante da perda vá, aos poucos, sendo
solucionada.
Dimensão interna e externa na
elaboração do luto
A questão fundamental em qualquer
perda é o valor afetivo que consciente ou inconscientemente é atribuído ao
objeto perdido. O investimento afetivo destinado ao objeto é ponto chave no
processo de luto, que pode se desenvolver de forma normal ou patológica. No
luto denominado normal, há o sofrimento, a vivência da perda e a percepção da
irreversibilidade e concretude da perda. Parte do ego é projetada no objeto,
porém há um esforço psíquico em recuperar aspectos reais da perda e assimilação
da experiência boa na relação com aquele objeto. No tempo que o processo
demandar, o impacto da perda vai dando lugar à possibilidade de novos vínculos
substitutivos e ao investimento da libido em outras atividades. Já no luto
patológico, a libido que deveria ser investida em outro objeto volta-se para o
próprio ego, desencadeando uma identificação com o objeto perdido e ativando a
autocrítica do superego, que pode resultar em hostilidade contra si mesmo. Não
efetuar uma reparação bem sucedida do objeto perdido aumenta o sentimento de
desespero e desamparo no enlutado, enquanto uma boa reparação proporciona
esperança renovada (Klein, 1940). Na reparação, a dor da realidade da perda é
experienciada juntamente com a tentativa de fazer algo a respeito desse
sofrimento, restabelecendo-se o objeto interno bom.
Além do mundo interno para o qual o
enlutado se volta (funções do ego, mecanismos de defesas e atitudes), a fim de viver
o processo do luto de forma saudável, é preciso que o sujeito busque aspectos
da realidade para a elaboração do objeto perdido. As sensações de insegurança,
perigo, desorganização e tristeza são inevitáveis, porém podem ser menos
intensas quando há um trabalho de reorganização da vida, onde o objetivo não é
se opor ao esquecimento ou à falta, mas sim à crença de que não há mais sentido
na vida. No caso do luto pela perda do trabalho, o processo do luto seria
beneficiado pela relativização das posições de vítima e culpado,
ressignificação do que é trabalho, reflexão sobre o tipo de relação que se
estabelecia com o trabalho e sobre as condições nas quais o trabalho se
realizava e visualização da situação de desemprego. A própria identidade das
pessoas muitas vezes se confunde com seu trabalho, visto que o processo de
trabalho e seus resultados ajudam o indivíduo a formar sua identidade. Entretanto
não é saudável que essa identificação seja tal que sujeito e trabalho tornem-se
indissociáveis. Considerando a imaginação o ela entre a realidade e a fantasia
e compreendendo que o processo de luto exige o equilíbrio entre as demandas
externas e internas, a imaginação articulada à criatividade pode mudar a forma
de perceber o mundo. Confiando nos objetos bons internalizados, criar e
desenvolver novas formas de ser no mundo são plenamente possíveis. Dedicar-se a
outras atividades, ampliar habilidades e aproximar relações interpessoais são
uma maneira de reconectar-se também com o mundo externo. Existem outras formas
de se relacionar com o mundo além do trabalho, e essa procura pode ser o
caminho cheio de agradáveis surpresas na elaboração do luto.
Considerações finais
Não seria a pressão que
o indivíduo sofre quando perde o trabalho, e o consequente sofrimento e luto,
um reflexo da hegemonia do utilitarismo? Por mais que o trabalhar seja dimensão
de importância inquestionável na vida, quando a relação com o trabalho se torna
apenas um meio de alcançar lucro e produtividade nos negócios, o indivíduo não
é mais sujeito do seu ser-no-mundo e sim escravo da economia vigente e peça da
engrenagem cruel que é a sociedade utilitarista. Quando a subjetividade é
ameaçada para dar lugar ao trabalho como mercadoria, o indivíduo,
inevitavelmente, reage afetivamente a isso. A ameaça à integridade do ego
demanda uma resposta comportamental e afetiva, que pode surgir na forma de
depressão, ansiedade ou outra condição psíquica grave. Muitas vezes o
equilíbrio entre as exigências externas e a tentativa de manter o self íntegro
levam a uma resposta desadaptativa e prejudicial para o indivíduo. Nessa
dificuldade de lidar com a crise que pode ser a perda do trabalho, o indivíduo
precisa desenvolver recursos internos para lidar com a situação desestabilizante
e buscar a homeostase inicial.
Para além da crítica sobre a atual forma de se
relacionar com o trabalho, e suas correlações econômicas e políticas, o homem
desenvolve sua maneira particular de viver suas atividades diárias. Trabalhar,
independente das características do trabalho, é o que há de mais próprio e
comum na interação do homem com o mundo. Seja através do meio acadêmico ou do
autodidatismo, seja assalariado ou voluntário, seja dentro de uma grande
organização ou autônomo, o trabalho é parte importante da vida. Ele é uma das
formas de nos posicionarmos no mundo, de contribuirmos no desenvolvimento da
sociedade, de externalizar o que somos internamente, de transformar quem somos.
Nossa experiência com o trabalho vai muito além do status social, do salário e
das tarefas que precisam ser cumpridas. Há um envolvimento cognitivo e, sem
dúvidas, afetivo, que está intimamente conectado com os significados do
trabalho e o sentido que damos a ele. Portanto, é completamente plausível
imaginar o sofrimento pelo qual uma pessoa que não pode mais trabalhar passa.
Seja demissão, aposentadoria, doença ou qualquer outro motivo, deixar de
realizar algo tão estruturante e psiquicamente organizador transforma o modo
como interagimos com nós mesmos e com o mundo.
O luto decorrente da
perda do trabalho é uma situação que qualquer pessoa pode vivencia a qualquer
tempo, sendo assim esse sofrimento não pode ser negligenciado. É um sofrimento
legítimo, real e pessoal, porém não precisa ser uma vivência que leve a
condições psíquicas mais graves e incapacitantes. O impacto do luto é questão
subjetiva e precisa ser bem avaliado para que sejam identificadas as medidas de
intervenção a serem propostas, que podem ir desde o fortalecimento da rede de
apoio social até um processo psicoterapêutico a longo prazo. A psicologia
clínica precisa ser uma ajuda psicológica voltada, também, para o campo do
trabalho e do desemprego, onde o espaço terapêutico se constitua em uma oportunidade
de questionamento sobre quem se é e - indissociavelmente – sobre onde se está.
Uma interrogação sobre si mesmo e sobre o mundo que se move. A psicoterapia
pode assumir um lugar de contraponto à incerteza, ameaça e adversidade para
aqueles que estão na situação de perda do emprego, e promover o acolhimento a
essas pessoas.
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RS: Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Muito muito bom!
ResponderExcluirObrigada!
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