quarta-feira, 15 de maio de 2013


Compreendendo o luto

Ana Molina da Silva
Psicóloga Clínica




            A morte já foi vista como parte da vida, um acontecimento natural pelo qual todos precisam passar, algo a se vivenciar em família, dentro das casas, com paz e tranquilidade. Mas com o advento do capitalismo, com as influências do higienismo na família e no contexto de trabalho, a morte passou a ser evitada a todo custo e as patologias tornaram-se sinônimo de fracasso e improdutividade (Kovács, 2008).
             A morte foi deslocada das salas de visita para a UTI, os avanços tecnológicos se destinaram a adiar e driblar o fim o mais perfeitamente possível, o moribundo não tem mais espaço para manifestar sentimentos frente à morte e o luto é encarado de forma velada (Combinato e Queiroz, 2006). Surge uma cultura do silêncio para a morte, com a frequente negação de sua existência, junto à falta de preparo para lidar com sua natural chegada (Kovács, 2005). Ao mesmo tempo, a explosão da urbanização e o avanço médico-tecnológico voltado para o prolongamento da vida, frente a todas as consequências sociais referentes às desigualdades, aumentaram o índice de mortes violentas e inesperadas, colaborando para um contato negativo com o morrer (Kovács, 2008). Essa visão é muitas vezes compartilhada pelos veículos de comunicação de maneira violenta e mal compreendida. Como afirma Ariès (1975/2003), “a morte domada passou a ser a morte interdita” (Combinato e Queiroz, 2006).
            O processo de luto se dá frente a uma perda de algo significativo, com o qual o indivíduo possui vínculo, para o qual projeta e investe energia e afeto (Esslinger, 2012). Ele ocorre como um rompimento de um equilíbrio, um desequilíbrio da homeostase, causando uma vulnerabilidade do sistema. A vivência do luto coloca o homem frente a frente com ameaças à segurança, mudanças importantes na vida e na família (Parkes, 2009), pode ocorrer de maneira simbólica, frente a fases do desenvolvimento, a partir de separações amorosas, perdas de emprego, de animais de estimação e até de processos de adoecimento (Combinato e Queiroz, 2006).
            Esses acontecimentos que provocam mudanças importantes na vida, sobretudo os inesperados, desafiam o que pode-se denominar de mundo presumido. Essa nova investida em uma reorganização de um mundo até então compreendido, provoca uma crise durante a qual pode-se vivenciar inquietude, tensão, ansiedade e indecisão (Parkes, 2009), sensações de desamparo, desorganização e desespero. Com a perda, uma parte de si se vai e, portanto, não implica apenas em uma nova realidade sobre o mundo, mas uma nova realidade sobre si mesmo (Kovács, 2002).
            A energia projetada ao “objeto”, frente ao processo de perda, precisa ser reprojetada. Frequentemente o objeto perdido é internalizado pelo Ego, mas isso ocorre de maneira rápida, durante um processo de elaboração do luto, a partir do qual o indivíduo realiza reorganizações e pode voltar-se para novas projeções de energia (Mendlowicz, 2000).
            No entanto, fatores referentes ao vínculo com o objeto/pessoa perdida, levando em consideração o apego, relações de dependência e laços familiares e afetivos, bem como características da perda em si, como de caráter inesperado, prematuro, violento, traumático, com desaparecimento do corpo ou suicídio, unidos a todo o histórico de perdas anteriores e à capacidade de resiliência (Esslinger, 2012), podem vir a caracterizar um luto complicado. Nesse caso, o indivíduo investe a energia anteriormente projetada ao “objeto” em si mesmo de forma prolongada, pode vivenciar desamparo, dor, negação, inibição e cronificação (Kovács, 2008). A própria recusa ao luto caracteriza-se por um congelamento do “objeto” no Ego, uma incorporação, o que torna a elaboração muito dolorosa e por vezes acompanhada por distorções da realidade (Mendlowicz, 2000).
            O processo de elaboração do luto pode seguir por dois caminhos apresentados por Parkes (2009) como “orientação para a perda” e “orientação para a restauração”. A primeira consiste em uma busca dolorosa pelo “objeto” perdido e quando é adotada de maneira persistente pode configurar um luto crônico, que se prolonga ao longo do tempo e desenvolve diversos outros sofrimentos secundários. A segunda consiste em uma motivação grande para a reparação e a reorientação em um mundo que parece ter perdido o significado e, quando adotada de maneira persistente, pode configurar um luto evitativo, a partir da negação da perda, ocasionando em um adiamento das emoções, com persistente inibição de sensações físicas e emocionais.
            Para Bowlby (1993), como afirma Caterina (2007), o luto é uma vivência de ansiedade de separação. A constante motivação para ligar-se ao “objeto” perdido é o principal motivo do luto patológico (Mendlowicz, 2000). Ainda para Bowlby (1993), segundo Combinato e Queiroz (2006), existem quatro fases do luto que variam em duração e intensidade, caracterizadas por torpor, saudade e busca da figura perdida, desorganização e desespero e a final fase de organização e aceitação da perda. Mas essas fases não precisam seguir um padrão e uma ordem cronológica (Caterina, 2007). O entorpecimento, a descrença e o fracasso em integrar a morte traumática ao mundo presumido são defesas contra os sentimentos de desamparo e insegurança e diante de perdas violentas, é comum vivenciar intensa ansiedade, hipervigilância e espanto frente a qualquer lembrança, caracterizando um luto traumático (Parkes, 2009).          
            Para Maria Julia Kovács (2002), a criança já vivencia a morte desde a tenra idade. O apego à mãe, abalado inúmeras vezes por separações e reencontros, gera sensações de desespero e desamparo, semelhantes às reações emocionais vivenciadas no luto. Esses fatos representam, talvez, a primeira relação com a perda e o primeiro repertório comportamental e emocional referente a ela. Ao contrário do que se pensa, a criança já compreende a existência da morte, a partir de perdas inerentes à vida, mas talvez a observe como um fenômeno de não-movimento e desaparecimento, com caráter reversível, como observado nas personagens da TV, e não finito, como compreendido pelos adultos.
            Ainda na infância, a partir de vivências de separações e reencontros com os pais, as crianças ficam expostas a situações que demandam o desenvolvimento de fatores emocionais frente ao desamparo consequente dos afastamentos, mas também frente às reações emocionais dos pais referentes ao padrão de apego com seus filhos e à maneira como reagem às solicitações de contato e cuidado. Parkes (2009) demonstra, a partir de teorizações de Ainsworth e de estudos com extensos questionários com pessoas enlutadas, pacientes ou não, desenvolvidos por Bowlby, que as hipóteses sobre o apego possuem íntima ligação com as reações emocionais às perdas na fase adulta e à maneira como o sujeito “resolve” o luto.
            Os apegos inseguros, por exemplo, podem ser manifestados por crianças que reagem com muito desamparo às situações de separação, apresentando choros e crises de raiva com o retorno da mãe. Essa, por sua vez, frequentemente se demonstra controladora e hipervigilante em relação à segurança de seu filho, diminuindo a possibilidade de autonomia e formando uma ansiedade frente ao não desenvolvimento da autoconfiança e aos relacionamentos interpessoais. Essas crianças, na fase adulta, podem vivenciar extrema ansiedade frente a situações de perda, especialmente se tiverem algum vínculo de dependência com a pessoa perdida.
            Os apegos evitadores são desenvolvidos por crianças que não possuem uma boa aceitação de vínculo e expressão de emoções frente à separação, por parte dos pais. Elas podem vir a se tornar adultos que utilizam estratégias evitadoras reativas a situações de perdas, negando-se a procurar ajuda e auxílio de pessoas próximas, com dificuldades para aceitar a aproximação e o amor de familiares, fatores tão importantes no processo de elaboração do luto.    
            Os apegos desorganizados se caracterizam por reações emocionais ambivalentes frente às situações de separação na infância. A criança se manifesta de maneira imprevisível e inconsistente, tanto na separação quanto na aproximação com as mães. Esse padrão frequentemente ocorre quando os pais se sentem impotentes e desesperados em relação às demandas de cuidado dos filhos, muito provavelmente como reação a processos traumáticos ou debilitantes vivenciados próximos ao nascimento. Frente a essa situação, a criança desenvolve sensações de impotência e desesperança e, quando vivenciadas na fase adulta, a partir de situações de perda, podem estar vinculadas a altos níveis de ansiedade e pânico, bem como a altos riscos de se envolver com o abuso de álcool e outras substâncias.

Considerações Finais

            O luto é uma reação emocional resultante de processos de perda de “objetos” com os quais se estabeleceu um forte vínculo. Por se tratar de um contato íntimo com as emoções e por estar vinculado a diversos fatores, o luto pode ser vivenciado de diversas maneiras, a depender das estruturas emocionais e mentais do sujeito, aos seus padrões de vínculos, às suas aprendizagens e, também, à capacidade de obter apoio familiar e social.
            Semelhante a uma crise, a vivência de um luto está vinculada a uma modificação profunda nos referenciais de mundo, implica uma transformação de ideais e expectativas. Esse rompimento com uma visão da realidade gera desconforto, ansiedade e angústia e demanda um processo de elaboração e reorganização de ideias, não somente relacionadas ao mundo externo, mas à própria identidade, que se abala com a perda de um “objeto” que até então fazia parte de sua composição.
            Reações patológicas no luto, que frequentemente estão relacionadas a fatores como caráter do falecimento, nível de proximidade e dependência, condições emocionais para reação, além de oportunidade de se apoiar em familiares e na sociedade podem ser evitadas quando o indivíduo está amparado por um apoio profissional acolhedor, que trabalha para uma elaboração da perda e para o fortalecimento de recursos emocionais para reagir a esse desequilíbrio. O luto é, portanto, um fenômeno que deve ser estudado e compreendido amplamente por profissionais da saúde e poderia ser retratado e verbalizado pela sociedade de uma maneira menos traumática, amedrontadora e violenta, o que tornaria a morte um acontecimento menos temido, em suas diversas implicâncias e situações.       


Referências Bibliográficas

Caterina, M.C. (2007) Luto adulto: fatores facilitadores e complicadores no processo de elaboração.

Combinato, D.S. e Queiroz, M.S. (2006) Morte: uma questão psicossocial.
Esslinger, I. (Comunicação pessoal, 24 de novembro de 2012)

Kovács, M.J., (2002) Morte e desenvolvimento humano.
Kovács, M.J., (2005) Educação para a morte.
Kovács, M.J., (2008) Desenvolvimento da tanatologia: estudos sobre a morte e o morrer.
Mendlowicz, E. (2000) O luto e seus destinos
Parkes, C.M. (2009) Amor e perda, as raízes do luto e suas complicações.

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