Compreendendo o luto
Ana Molina
da Silva
Psicóloga
Clínica
A
morte já foi vista como parte da vida, um acontecimento natural pelo qual todos
precisam passar, algo a se vivenciar em família, dentro das casas, com paz e
tranquilidade. Mas com o advento do capitalismo, com as influências do
higienismo na família e no contexto de trabalho, a morte passou a ser evitada a
todo custo e as patologias tornaram-se sinônimo de fracasso e improdutividade
(Kovács, 2008).
A morte foi deslocada das salas de visita para
a UTI, os avanços tecnológicos se destinaram a adiar e driblar o fim o mais
perfeitamente possível, o moribundo não tem mais espaço para manifestar
sentimentos frente à morte e o luto é encarado de forma velada (Combinato e
Queiroz, 2006). Surge uma cultura do silêncio para a morte, com a frequente
negação de sua existência, junto à falta de preparo para lidar com sua natural
chegada (Kovács, 2005). Ao mesmo tempo, a explosão da urbanização e o avanço
médico-tecnológico voltado para o prolongamento da vida, frente a todas as
consequências sociais referentes às desigualdades, aumentaram o índice de
mortes violentas e inesperadas, colaborando para um contato negativo com o
morrer (Kovács, 2008). Essa visão é muitas vezes compartilhada pelos veículos
de comunicação de maneira violenta e mal compreendida. Como afirma Ariès
(1975/2003), “a morte domada passou a ser a morte interdita” (Combinato e
Queiroz, 2006).
O processo de luto se dá frente a
uma perda de algo significativo, com o qual o indivíduo possui vínculo, para o
qual projeta e investe energia e afeto (Esslinger, 2012). Ele ocorre como um
rompimento de um equilíbrio, um desequilíbrio da homeostase, causando uma
vulnerabilidade do sistema. A vivência do luto coloca o homem frente a frente
com ameaças à segurança, mudanças importantes na vida e na família (Parkes,
2009), pode ocorrer de maneira simbólica, frente a fases do desenvolvimento, a
partir de separações amorosas, perdas de emprego, de animais de estimação e até
de processos de adoecimento (Combinato e Queiroz, 2006).
Esses acontecimentos que provocam
mudanças importantes na vida, sobretudo os inesperados, desafiam o que pode-se
denominar de mundo presumido. Essa nova investida em uma reorganização de um
mundo até então compreendido, provoca uma crise durante a qual pode-se
vivenciar inquietude, tensão, ansiedade e indecisão (Parkes, 2009), sensações
de desamparo, desorganização e desespero. Com a perda, uma parte de si se vai
e, portanto, não implica apenas em uma nova realidade sobre o mundo, mas uma
nova realidade sobre si mesmo (Kovács, 2002).
A energia projetada ao “objeto”,
frente ao processo de perda, precisa ser reprojetada. Frequentemente o objeto
perdido é internalizado pelo Ego, mas isso ocorre de maneira rápida, durante um
processo de elaboração do luto, a partir do qual o indivíduo realiza
reorganizações e pode voltar-se para novas projeções de energia (Mendlowicz,
2000).
No entanto, fatores referentes ao
vínculo com o objeto/pessoa perdida, levando em consideração o apego, relações
de dependência e laços familiares e afetivos, bem como características da perda
em si, como de caráter inesperado, prematuro, violento, traumático, com
desaparecimento do corpo ou suicídio, unidos a todo o histórico de perdas
anteriores e à capacidade de resiliência (Esslinger, 2012), podem vir a
caracterizar um luto complicado. Nesse caso, o indivíduo investe a energia
anteriormente projetada ao “objeto” em si mesmo de forma prolongada, pode
vivenciar desamparo, dor, negação, inibição e cronificação (Kovács, 2008). A
própria recusa ao luto caracteriza-se por um congelamento do “objeto” no Ego,
uma incorporação, o que torna a elaboração muito dolorosa e por vezes
acompanhada por distorções da realidade (Mendlowicz, 2000).
O processo de elaboração do luto
pode seguir por dois caminhos apresentados por Parkes (2009) como “orientação
para a perda” e “orientação para a restauração”. A primeira consiste em uma
busca dolorosa pelo “objeto” perdido e quando é adotada de maneira persistente
pode configurar um luto crônico, que se prolonga ao longo do tempo e desenvolve
diversos outros sofrimentos secundários. A segunda consiste em uma motivação
grande para a reparação e a reorientação em um mundo que parece ter perdido o
significado e, quando adotada de maneira persistente, pode configurar um luto
evitativo, a partir da negação da perda, ocasionando em um adiamento das
emoções, com persistente inibição de sensações físicas e emocionais.
Para Bowlby (1993), como afirma
Caterina (2007), o luto é uma vivência de ansiedade de separação. A constante
motivação para ligar-se ao “objeto” perdido é o principal motivo do luto
patológico (Mendlowicz, 2000). Ainda para Bowlby (1993), segundo Combinato e
Queiroz (2006), existem quatro fases do luto que variam em duração e intensidade,
caracterizadas por torpor, saudade e busca da figura perdida, desorganização e
desespero e a final fase de organização e aceitação da perda. Mas essas fases
não precisam seguir um padrão e uma ordem cronológica (Caterina, 2007). O
entorpecimento, a descrença e o fracasso em integrar a morte traumática ao
mundo presumido são defesas contra os sentimentos de desamparo e insegurança e
diante de perdas violentas, é comum vivenciar intensa ansiedade,
hipervigilância e espanto frente a qualquer lembrança, caracterizando um luto
traumático (Parkes, 2009).
Para Maria Julia Kovács (2002), a
criança já vivencia a morte desde a tenra idade. O apego à mãe, abalado
inúmeras vezes por separações e reencontros, gera sensações de desespero e
desamparo, semelhantes às reações emocionais vivenciadas no luto. Esses fatos
representam, talvez, a primeira relação com a perda e o primeiro repertório
comportamental e emocional referente a ela. Ao contrário do que se pensa, a
criança já compreende a existência da morte, a partir de perdas inerentes à
vida, mas talvez a observe como um fenômeno de não-movimento e desaparecimento,
com caráter reversível, como observado nas personagens da TV, e não finito,
como compreendido pelos adultos.
Ainda na infância, a partir de vivências
de separações e reencontros com os pais, as crianças ficam expostas a situações
que demandam o desenvolvimento de fatores emocionais frente ao desamparo
consequente dos afastamentos, mas também frente às reações emocionais dos pais
referentes ao padrão de apego com seus filhos e à maneira como reagem às
solicitações de contato e cuidado. Parkes (2009) demonstra, a partir de
teorizações de Ainsworth e de estudos com extensos questionários com pessoas
enlutadas, pacientes ou não, desenvolvidos por Bowlby, que as hipóteses sobre o
apego possuem íntima ligação com as reações emocionais às perdas na fase adulta
e à maneira como o sujeito “resolve” o luto.
Os apegos inseguros, por exemplo,
podem ser manifestados por crianças que reagem com muito desamparo às situações
de separação, apresentando choros e crises de raiva com o retorno da mãe. Essa,
por sua vez, frequentemente se demonstra controladora e hipervigilante em
relação à segurança de seu filho, diminuindo a possibilidade de autonomia e
formando uma ansiedade frente ao não desenvolvimento da autoconfiança e aos
relacionamentos interpessoais. Essas crianças, na fase adulta, podem vivenciar
extrema ansiedade frente a situações de perda, especialmente se tiverem algum
vínculo de dependência com a pessoa perdida.
Os apegos evitadores são
desenvolvidos por crianças que não possuem uma boa aceitação de vínculo e
expressão de emoções frente à separação, por parte dos pais. Elas podem vir a
se tornar adultos que utilizam estratégias evitadoras reativas a situações de
perdas, negando-se a procurar ajuda e auxílio de pessoas próximas, com
dificuldades para aceitar a aproximação e o amor de familiares, fatores tão
importantes no processo de elaboração do luto.
Os apegos desorganizados se
caracterizam por reações emocionais ambivalentes frente às situações de
separação na infância. A criança se manifesta de maneira imprevisível e
inconsistente, tanto na separação quanto na aproximação com as mães. Esse
padrão frequentemente ocorre quando os pais se sentem impotentes e desesperados
em relação às demandas de cuidado dos filhos, muito provavelmente como reação a
processos traumáticos ou debilitantes vivenciados próximos ao nascimento.
Frente a essa situação, a criança desenvolve sensações de impotência e
desesperança e, quando vivenciadas na fase adulta, a partir de situações de
perda, podem estar vinculadas a altos níveis de ansiedade e pânico, bem como a
altos riscos de se envolver com o abuso de álcool e outras substâncias.
Considerações Finais
O luto é uma reação emocional
resultante de processos de perda de “objetos” com os quais se estabeleceu um
forte vínculo. Por se tratar de um contato íntimo com as emoções e por estar
vinculado a diversos fatores, o luto pode ser vivenciado de diversas maneiras,
a depender das estruturas emocionais e mentais do sujeito, aos seus padrões de
vínculos, às suas aprendizagens e, também, à capacidade de obter apoio familiar
e social.
Semelhante a uma crise, a vivência
de um luto está vinculada a uma modificação profunda nos referenciais de mundo,
implica uma transformação de ideais e expectativas. Esse rompimento com uma
visão da realidade gera desconforto, ansiedade e angústia e demanda um processo
de elaboração e reorganização de ideias, não somente relacionadas ao mundo
externo, mas à própria identidade, que se abala com a perda de um “objeto” que
até então fazia parte de sua composição.
Reações patológicas no luto, que
frequentemente estão relacionadas a fatores como caráter do falecimento, nível
de proximidade e dependência, condições emocionais para reação, além de
oportunidade de se apoiar em familiares e na sociedade podem ser evitadas
quando o indivíduo está amparado por um apoio profissional acolhedor, que
trabalha para uma elaboração da perda e para o fortalecimento de recursos
emocionais para reagir a esse desequilíbrio. O luto é, portanto, um fenômeno
que deve ser estudado e compreendido amplamente por profissionais da saúde e
poderia ser retratado e verbalizado pela sociedade de uma maneira menos
traumática, amedrontadora e violenta, o que tornaria a morte um acontecimento
menos temido, em suas diversas implicâncias e situações.
Referências
Bibliográficas
Caterina, M.C. (2007) Luto adulto: fatores facilitadores e
complicadores no processo de elaboração.
Combinato, D.S.
e Queiroz, M.S. (2006) Morte: uma questão
psicossocial.
Esslinger, I.
(Comunicação pessoal, 24 de novembro de 2012)
Kovács, M.J.,
(2002) Morte e desenvolvimento humano.
Kovács, M.J.,
(2005) Educação para a morte.
Kovács, M.J.,
(2008) Desenvolvimento da tanatologia:
estudos sobre a morte e o morrer.
Mendlowicz, E.
(2000) O luto e seus destinos
Parkes, C.M.
(2009) Amor e perda, as raízes do luto e
suas complicações.
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