A definição de crise
proposta no post anterior (Processo subjetivo de vivência ou experimentação de
situações de vida, nas quais condições internas e externas mobilizam uma pessoa
e demandam novas respostas para as quais ela ainda não adquiriu, não
desenvolveu ou perdeu a capacidade, repertório ou recursos capazes de dar solução
à complexidade da tarefa em questão.) traz oito aspectos do processo, cada um
com a sua importância: demanda, condições internas e externas, resposta,
domínio, complexidade, processo, subjetividade e solução.
A demanda é o ponto de
partida do conceito de crise, já que se não há uma exigência, não há crise. A
demanda é essencial no processo pois cria uma pressão e um desequilíbrio,
mantendo o sujeito mobilizado. Ela força o sujeito a se mover em determinada
direção a fim de reestabelecer o equilíbrio inicial, característica que ressalta
que o desenvolvimento deve optar por uma ou outra direção, mobilizando recursos
de crescimento.
O sujeito está
continuamente sob a ação de forças internas e externas, que quando bem
organizadas mantêm o equilíbrio dinâmico do sujeito. As relações e interações
do sujeito com seu meio (condições externas) e a força e o domínio do aparelho
psíquico (condições internas) participam da configuração da crise, e é
importante não menosprezar a participação de nenhuma das duas forças. As
condições internas e externas delimitam as possibilidades de reposta e a
resolução como um todo da crise, por isso conseguir separar os fatores internos
dos externos pode ajudar no estabelecimento de estratégias de intervenção e
prevenção. Fatores externos ao sujeito estarão sempre exigindo novas respostas,
que só serão possíveis se internamente o sujeito estiver preparado e forte o
suficiente para responder.
A resposta é outro
aspecto da crise e está diretamente relacionada com a demanda. Toda demanda
exige uma reposta, que por sua vez depende da mobilização do sujeito. A reposta
pode ser satisfatória, mas também pode ser uma omissão ou recusa. Quando o
sujeito não se mobiliza, fatalmente acaba encontrando soluções parciais ou de
compromisso. Este tipo de solução é superficial, e inclusive questiono se
realmente pode ser chamado de solução. A solução de compromisso é um estado
precário onde o sujeito tenta conscientemente manter a demanda fora de sua vida
para evitar ter que dar uma reposta satisfatória. Isso leva a um constante
estado de vigilância e vulnerabilidade. Por meio da intervenção é possível
modificar ou remover os fatores associados à demanda, mas a modificação do meio
ou do significado subjetivo da demanda não excluem a necessidade de responder.
As mudanças podem apenas facilitar as repostas ou evitar que a crise chegue em sua
fase crítica. A característica mais interessante da resposta é que,
independentemente da sua qualidade, ela é sempre necessária. Haverá uma crise
caso não haja uma resposta para a demanda, independente se a resposta for um
investimento para resolver a situação ou uma omissão.
Nem toda demanda gera
uma crise, e é aqui que entra o quarto aspecto da crise. A crise, sob esse
aspecto, só existe quando o sujeito não adquiriu, não desenvolveu, não domina
ou perdeu a capacidade para enfrentar uma demanda. Caso o sujeito possua os
recursos necessários, não haverá crise. Sendo assim, é possível que
externamente se configure uma crise mas que isso não se transforme em uma crise
psicológica. É bom ficar atento a isso para não confundir uma necessidade
específica do contexto de trabalho, por exemplo, com uma nova experiência de
vida. O sujeito pode resolver sem dificuldades um problema do trabalho sem
entrar no processo de crise se ele tiver repertório e recursos para lidar com a
situação. Essa capacidade de enfrentar novas situações e demandas pode ser
progressivamente alcançada e fortificada ao longo do desenvolvimento, à medida que
o sujeito passa por diversas experiências e assume diferentes papéis. De certa
forma o sujeito vai treinando e experimentando identidades e respostas mais ou
menos funcionais e adaptativas conforme é apresentado às demandas da vida. Assim
o sujeito pode estar mais ou menos pronto para armadilhas futuras, e isso
depende muito do investimento que o sujeito faz para resolver os próprios
problemas. Claro que sempre espera-se que o desfecho da crise seja satisfatório
e leve ao amadurecimento, mas não tenho dúvidas que o investimento é o mais
importante do ponto de vista desenvolvimental.
O aspecto processual da
crise é o mais fundamental e talvez um dos mais difíceis de ser compreendido,
porque é muito fácil, se não automático, associar a crise a um momento pontual
e específico. Ao contrário disso, a crise tem sua história própria. Tem
antecedentes e precursores, seu desenvolvimento próprio e um desfecho. É
importante entender isso porque elementos das crises passadas acabam se
relacionando com situações e superações posteriores, a indispensável aquisição
de habilidades. Um elemento importante desse processo são os fatores de risco e
de proteção, que podem dificultar ou favorecer a solução. Por ser um processo,
a crise não surge do nada. Sendo assim acredito que alguns sinais podem alertar
para uma situação que tem potencial para se agravar, a não ser que sejam
identificados adequadamente e medidas preventivas sejam adotadas. Isso pode ser
feito pelo próprio sujeito, caso ele tenha condições mínimas de auto-análise, ou por
familiares e amigos. Se conhecer bem é um bom meio de identificar antecedentes
e fatores de risco. Quem está vivendo a crise muitas vezes não percebe que
existem possibilidades de solução, e isso pode dificultar um bom desfecho.
Porém, só quem está vivendo o problema sabe o quanto é doloroso e angustiante, e
por esse e outros motivos um apoio especializado é importantíssimo;
alguém que mostre que a superação é possível. É de se esperar que a crise
também tenha desfechos menos desejáveis, como a formação de sintomas, quadros
patológicos ou padrões crônicos de não-adaptação. Nesses casos, uma nova
estrutura pode se formar ou dificuldades podem se acumular, dificultando a
superação de outras situações no futuro. Uma última consideração a fazer sobre
a característica processual da crise é sobre suas etapas, principalmente sobre
a atenção dada a uma etapa em especial. Sem dúvidas a fase crítica da crise é a
mais enfatizada e lembrada. É nessa fase que há uma ruptura e a formação de
sintomas agudos ou atuações inadequadas; é claramente o momento mais difícil e
que necessita de algum tipo de intervenção. Mas valorizar demais essa etapa da
crise pode levar a negligência da dinâmica da crise e dos elementos que podem
indicar alternativas de prevenção e até mesmo de intervenção. Além disso, a supervalorização da fase crítica
da crise contribui para uma visão preconceituosa de quem está em crise, e isso
é o que essas pessoas menos precisam.
Por mais teorizações
que sejam feitas sobre o assunto, a crise psicológica é um processo
experiencial e portanto subjetivo. A crise é um processo no qual o sujeito usa de funções psicológicas e da interação com o meio para a atualização das suas
necessidades nos mais variados contextos, como pessoal, relacional, familiar,
social, histórico e cultural. A crise é claramente subjetiva, porém fatores
sociais e ambientais frequentemente estão associados à vivência da crise. Aqui
é possível perceber dois elementos separados mas que estão sempre relacionados:
o aspecto objetivo e o aspecto subjetivo da crise. O primeiro refere-se ao
evento externo desestabilizador do equilíbrio interno, o fato concreto que
desencadeou a crise. O segundo refere-se aos mecanismos de enfrentamento, que
são internos; é a maneira como encaramos a crise.
O último aspecto da
crise é a solução. O equilíbrio natural e desejável dos seres vivos é o
equilíbrio dinâmico autônomo. Entretanto, na crise, é preciso uma mudança de
estado para manter esse equilíbrio. Essa mudança de estado exige investimento e
modificação das condições de sustentação e autonomia, portanto um sujeito que
passa por uma crise inevitavelmente será modificado por ela. Além disso,
existem três tipos de solução da situação de crise. O primeiro tipo é a
superação, que pode ser alcançada passando-se ou não pela fase crítica da
crise. A superação pode ser entendida como uma oportunidade de aquisição de
competências, expansão do repertório pessoal, aumento da auto-estima ,
consolidação da identidade, ampliação da autonomia, da responsabilidade, da liberdade
e da maturidade. É o desfecho mais desejado e que traz mais benefícios, mesmo
que não seja alcançada assim de forma tão ideal. Mesmo em meio ao sofrimento e
angústia o sujeito é recompensado quando investe na superação da crise. Mas a
crise também nos mostra a possibilidade de fracasso, de nos sentirmos incapazes
de responder adequadamente. O segundo tipo de solução, a estagnação, é a
acomodação em um nível de equilíbrio inferior ao anterior. Na estagnação o
sujeito parece não conseguir enfrentar a situação de maneira adaptativa e acaba
evitando, tornando-se vulnerável a rupturas em situações futuras. A ruptura é o
terceiro tipo de solução, onde há a restrição ou rigidez do repertório interno,
mesmo diante de dor ou sofrimento elevado, perda de liberdade, autonomia e da
capacidade de enfrentamento de situações cotidianas. Popularmente esse pode ser considerado o
“fundo do poço”. É preciso ressaltar que nem todas as pessoas que dão respostas
claramente desadaptativas estão em crise. É possível que essa seja a sua
maneira usual de ser, o seu melhor nível de adaptação. Essas são casos sérios e
diferenciados, e não podem ser confundidos com situação de crise. Por isso a
sintomatologia não seja o melhor critério para caracterizar a crise.