segunda-feira, 1 de julho de 2013

Crise - Parte II: Aspectos do Processo

A definição de crise proposta no post anterior (Processo subjetivo de vivência ou experimentação de situações de vida, nas quais condições internas e externas mobilizam uma pessoa e demandam novas respostas para as quais ela ainda não adquiriu, não desenvolveu ou perdeu a capacidade, repertório ou recursos capazes de dar solução à complexidade da tarefa em questão.) traz oito aspectos do processo, cada um com a sua importância: demanda, condições internas e externas, resposta, domínio, complexidade, processo, subjetividade e solução.

A demanda é o ponto de partida do conceito de crise, já que se não há uma exigência, não há crise. A demanda é essencial no processo pois cria uma pressão e um desequilíbrio, mantendo o sujeito mobilizado. Ela força o sujeito a se mover em determinada direção a fim de reestabelecer o equilíbrio inicial, característica que ressalta que o desenvolvimento deve optar por uma ou outra direção, mobilizando recursos de crescimento.

O sujeito está continuamente sob a ação de forças internas e externas, que quando bem organizadas mantêm o equilíbrio dinâmico do sujeito. As relações e interações do sujeito com seu meio (condições externas) e a força e o domínio do aparelho psíquico (condições internas) participam da configuração da crise, e é importante não menosprezar a participação de nenhuma das duas forças. As condições internas e externas delimitam as possibilidades de reposta e a resolução como um todo da crise, por isso conseguir separar os fatores internos dos externos pode ajudar no estabelecimento de estratégias de intervenção e prevenção. Fatores externos ao sujeito estarão sempre exigindo novas respostas, que só serão possíveis se internamente o sujeito estiver preparado e forte o suficiente para responder.

A resposta é outro aspecto da crise e está diretamente relacionada com a demanda. Toda demanda exige uma reposta, que por sua vez depende da mobilização do sujeito. A reposta pode ser satisfatória, mas também pode ser uma omissão ou recusa. Quando o sujeito não se mobiliza, fatalmente acaba encontrando soluções parciais ou de compromisso. Este tipo de solução é superficial, e inclusive questiono se realmente pode ser chamado de solução. A solução de compromisso é um estado precário onde o sujeito tenta conscientemente manter a demanda fora de sua vida para evitar ter que dar uma reposta satisfatória. Isso leva a um constante estado de vigilância e vulnerabilidade. Por meio da intervenção é possível modificar ou remover os fatores associados à demanda, mas a modificação do meio ou do significado subjetivo da demanda não excluem a necessidade de responder. As mudanças podem apenas facilitar as repostas ou evitar que a crise chegue em sua fase crítica. A característica mais interessante da resposta é que, independentemente da sua qualidade, ela é sempre necessária. Haverá uma crise caso não haja uma resposta para a demanda, independente se a resposta for um investimento para resolver a situação ou uma omissão.

Nem toda demanda gera uma crise, e é aqui que entra o quarto aspecto da crise. A crise, sob esse aspecto, só existe quando o sujeito não adquiriu, não desenvolveu, não domina ou perdeu a capacidade para enfrentar uma demanda. Caso o sujeito possua os recursos necessários, não haverá crise. Sendo assim, é possível que externamente se configure uma crise mas que isso não se transforme em uma crise psicológica. É bom ficar atento a isso para não confundir uma necessidade específica do contexto de trabalho, por exemplo, com uma nova experiência de vida. O sujeito pode resolver sem dificuldades um problema do trabalho sem entrar no processo de crise se ele tiver repertório e recursos para lidar com a situação. Essa capacidade de enfrentar novas situações e demandas pode ser progressivamente alcançada e fortificada ao longo do desenvolvimento, à medida que o sujeito passa por diversas experiências e assume diferentes papéis. De certa forma o sujeito vai treinando e experimentando identidades e respostas mais ou menos funcionais e adaptativas conforme é apresentado às demandas da vida. Assim o sujeito pode estar mais ou menos pronto para armadilhas futuras, e isso depende muito do investimento que o sujeito faz para resolver os próprios problemas. Claro que sempre espera-se que o desfecho da crise seja satisfatório e leve ao amadurecimento, mas não tenho dúvidas que o investimento é o mais importante do ponto de vista desenvolvimental.

O aspecto processual da crise é o mais fundamental e talvez um dos mais difíceis de ser compreendido, porque é muito fácil, se não automático, associar a crise a um momento pontual e específico. Ao contrário disso, a crise tem sua história própria. Tem antecedentes e precursores, seu desenvolvimento próprio e um desfecho. É importante entender isso porque elementos das crises passadas acabam se relacionando com situações e superações posteriores, a indispensável aquisição de habilidades. Um elemento importante desse processo são os fatores de risco e de proteção, que podem dificultar ou favorecer a solução. Por ser um processo, a crise não surge do nada. Sendo assim acredito que alguns sinais podem alertar para uma situação que tem potencial para se agravar, a não ser que sejam identificados adequadamente e medidas preventivas sejam adotadas. Isso pode ser feito pelo próprio sujeito, caso ele tenha condições mínimas de auto-análise, ou por familiares e amigos. Se conhecer bem é um bom meio de identificar antecedentes e fatores de risco. Quem está vivendo a crise muitas vezes não percebe que existem possibilidades de solução, e isso pode dificultar um bom desfecho. Porém, só quem está vivendo o problema sabe o quanto é doloroso e angustiante, e por esse e outros motivos um apoio especializado é importantíssimo; alguém que mostre que a superação é possível. É de se esperar que a crise também tenha desfechos menos desejáveis, como a formação de sintomas, quadros patológicos ou padrões crônicos de não-adaptação. Nesses casos, uma nova estrutura pode se formar ou dificuldades podem se acumular, dificultando a superação de outras situações no futuro. Uma última consideração a fazer sobre a característica processual da crise é sobre suas etapas, principalmente sobre a atenção dada a uma etapa em especial. Sem dúvidas a fase crítica da crise é a mais enfatizada e lembrada. É nessa fase que há uma ruptura e a formação de sintomas agudos ou atuações inadequadas; é claramente o momento mais difícil e que necessita de algum tipo de intervenção. Mas valorizar demais essa etapa da crise pode levar a negligência da dinâmica da crise e dos elementos que podem indicar alternativas de prevenção e até mesmo de intervenção.  Além disso, a supervalorização da fase crítica da crise contribui para uma visão preconceituosa de quem está em crise, e isso é o que essas pessoas menos precisam.

Por mais teorizações que sejam feitas sobre o assunto, a crise psicológica é um processo experiencial e portanto subjetivo. A crise é um processo no qual o sujeito usa de funções psicológicas e da interação com o meio para a atualização das suas necessidades nos mais variados contextos, como pessoal, relacional, familiar, social, histórico e cultural. A crise é claramente subjetiva, porém fatores sociais e ambientais frequentemente estão associados à vivência da crise. Aqui é possível perceber dois elementos separados mas que estão sempre relacionados: o aspecto objetivo e o aspecto subjetivo da crise. O primeiro refere-se ao evento externo desestabilizador do equilíbrio interno, o fato concreto que desencadeou a crise. O segundo refere-se aos mecanismos de enfrentamento, que são internos; é a maneira como encaramos a crise.

O último aspecto da crise é a solução. O equilíbrio natural e desejável dos seres vivos é o equilíbrio dinâmico autônomo. Entretanto, na crise, é preciso uma mudança de estado para manter esse equilíbrio. Essa mudança de estado exige investimento e modificação das condições de sustentação e autonomia, portanto um sujeito que passa por uma crise inevitavelmente será modificado por ela. Além disso, existem três tipos de solução da situação de crise. O primeiro tipo é a superação, que pode ser alcançada passando-se ou não pela fase crítica da crise. A superação pode ser entendida como uma oportunidade de aquisição de competências, expansão do repertório pessoal, aumento da auto-estima , consolidação da identidade, ampliação da autonomia, da responsabilidade, da liberdade e da maturidade. É o desfecho mais desejado e que traz mais benefícios, mesmo que não seja alcançada assim de forma tão ideal. Mesmo em meio ao sofrimento e angústia o sujeito é recompensado quando investe na superação da crise. Mas a crise também nos mostra a possibilidade de fracasso, de nos sentirmos incapazes de responder adequadamente. O segundo tipo de solução, a estagnação, é a acomodação em um nível de equilíbrio inferior ao anterior. Na estagnação o sujeito parece não conseguir enfrentar a situação de maneira adaptativa e acaba evitando, tornando-se vulnerável a rupturas em situações futuras. A ruptura é o terceiro tipo de solução, onde há a restrição ou rigidez do repertório interno, mesmo diante de dor ou sofrimento elevado, perda de liberdade, autonomia e da capacidade de enfrentamento de situações cotidianas. Popularmente esse pode ser considerado o “fundo do poço”. É preciso ressaltar que nem todas as pessoas que dão respostas claramente desadaptativas estão em crise. É possível que essa seja a sua maneira usual de ser, o seu melhor nível de adaptação. Essas são casos sérios e diferenciados, e não podem ser confundidos com situação de crise. Por isso a sintomatologia não seja o melhor critério para caracterizar a crise.




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